sexta-feira, outubro 11, 2013

A virada

Pessoas supersticiosas são aquelas que não suportam o vazio de sentido. É preciso preencher todos os espaços, inclusive e principalmente o do acaso, com o véu apaziguador da circunstância cósmica inescapável. Um raio cai a dois metros de distância de alguém, e aquele elemento da natureza se transforma imediatamente em algum tipo de mensageiro de sinais ocultos. Se o raio acerta em cheio e pulveriza o azarado, haverá uma alma inocente para dizer que era para ser, que ninguém escapa da própria sorte e coisa e tal. Em 100% dos casos, porém, um raio é apenas um raio – e podemos nos dar por muito satisfeitos, enquanto espécie, por termos aprendido uma ou duas coisas que nos ajudam a evitar que eles caiam sobre nossas cabeças com mais frequência ainda.

O filósofo-cientista-poeta romano Lucrécio, que viveu no século 1 AC, foi um dos primeiros pensadores da nossa era a sacudir o coreto da superstição que corria solta em sua época. No poema Sobre a Natureza das Coisas, que ecoa ideias de Epicuro e de outros filósofos gregos, Lucrécio propõe que a humanidade deixe as superstições para trás e corra de braços abertos para a lógica, a razão e a ciência. Ou seja: em vez de ficar acreditando que raios são castigo dos céus, tratar de descobrir por que caem e como dar no pé quando eles se aproximam.

O delicioso A Virada – O Nascimento do Mundo Moderno, do historiador americano Stephen Greenblatt, conta as aventuras do caçador de livros que encontrou os manuscritos de Lucrécio em uma empoeirada prateleira de um mosteiro na Alemanha, em 1417. O historiador defende a tese de que a descoberta, mais ou menos acidental, foi decisiva para a história da humanidade. Ao afirmar que o universo funciona sem o auxílio de forças sobrenaturais, o livro de Lucrécio, argumenta Greenblatt, pode ter dado o impulso que faltava para a Europa sair da trevosa e amedrontada Idade Média, dando início ao processo histórico que desembocaria na modernidade e na nova ordem social simbolizada pelo 14 de julho.

Uma das ideias de Lucrécio era exatamente a de que tudo que existe é fruto de uma “virada”, um pequeno desvio que resulta em algo novo e revolucionário. Para Greenblatt, o livro de Lucrécio marcou uma dessas “viradas” – definitiva e luminosa.

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Em 1988, um livro de capa verde e amarela veio à luz no Brasil sob a expectativa de uma virada não menos dramática, ainda que de alcance mais restrito: encerrar o ciclo de desigualdades, de fato e de direitos, que marcou os primeiros 500 anos de história do nosso país. As reportagens sobre os 25 anos da Constituição de 1988, porém, dividiram espaço nos jornais desta semana com os resultados das investigações sobre a morte do pedreiro Amarildo, torturado e morto pela polícia do Rio como se a chamada “Constituição cidadã” nunca tivesse existido – ou valesse apenas parte do tempo, para apenas parte das pessoas.

Talvez 25 anos seja um tempo muito curto para uma “virada” radical e definitiva. Talvez a nossa esteja ali na esquina, bem perto, quase ao alcance dos olhos. Por enquanto, não deixa de ser uma circunstância cósmica irônica, se não inescapável, que a morte em nada excepcional ou revolucionária de Amarildo tenha acontecido justamente num 14 de julho.
Claudia Laitano
Zero Hora 05/10/13

quarta-feira, outubro 09, 2013

Velhos órfãos

Com o envelhecimento da população, cada vez mais pessoas se tornam órfãs em idade avançada. Perdi meu pai quando tinha 38 anos e ele chegara aos 70. Em julho de 2013 perdi a mãe, aos 98. O amigo Geraldo SantAnna, no velório, contou que sua avó costumava dizer: Só se fica adulto quando se é órfão, e órfão é quem não tem pai nem mãe. O rabino Ariel disse palavras semelhantes quando falou na hora do enterro.

Poucos dias antes, Paula Span publicara um artigo no New York Times sobre o assunto. Perdera o pai em dezembro, aos 90 anos. Ela publica sobre famílias com pais idosos. Vários dos comentários de Paula têm a ver com a experiência recente, minha e de meus irmãos, nos últimos anos com nossa mãe, e no que acontece depois.

Esta orfandade não é como a tragédia de alguns personagens de Dickens. Quando não há mais patriarca nem matriarca, quando já não se é o filho de alguém que está vivo, não há mais uma geração se interpondo entre a nossa e a morte. Nós somos a próxima e somos confrontados com a nossa própria finitude. Por isso, a perda do primeiro que se vai é diferente. Ali ainda fica um a ser consolado, cuidado, apoiado.

Durante anos, telefonemas entre irmãos começaram por “está tudo bem”, e só então se entrava no assunto. Agora, as ligações se iniciam por “alô, olá, oi”... O que nos uniu e ocupou nos últimos tempos da mãe, como há 30 anos quando nosso pai adoeceu, deixou de existir. Como iremos nos relacionar daqui em diante? Iremos?

Ter pais vivos até idade avançada é um privilégio. Mas ser o filho de alguém por tantos anos e já não ser causa impacto profundo. Não há alívio pelo fim dos cuidados e preocupações. Há, sim, um vazio imenso.

Se a relação foi boa, a perda faz sentir falta da convivência longa e prazerosa. Quando não era tão boa assim, pode haver a dor adicional do desperdício de ocasiões para resolver conflitos.

Não ter mais a última pessoa que esteve conosco desde que nascemos e podia contar detalhes, que sabia quem era aquela tia numa foto antiga, entendia uma piada só nossa ou lembrava um apelido familiar, são faltas definitivas que passamos a perceber.

Quando a velhice fica crítica, sabemos que o fim e consequente perda se aproximam. Podemos estar preparados, nunca estamos prontos. Na hora, a dor da perda e o luto têm que ser vividos. É o único caminho. Não há atalhos. Saber dos sentimentos de outros nessa fase pode ajudar a nos sentirmos menos sós.

Flavio José Kanter - Médico

Fonte: Zero Hora 08/10/12