quarta-feira, outubro 09, 2013

Velhos órfãos

Com o envelhecimento da população, cada vez mais pessoas se tornam órfãs em idade avançada. Perdi meu pai quando tinha 38 anos e ele chegara aos 70. Em julho de 2013 perdi a mãe, aos 98. O amigo Geraldo SantAnna, no velório, contou que sua avó costumava dizer: Só se fica adulto quando se é órfão, e órfão é quem não tem pai nem mãe. O rabino Ariel disse palavras semelhantes quando falou na hora do enterro.

Poucos dias antes, Paula Span publicara um artigo no New York Times sobre o assunto. Perdera o pai em dezembro, aos 90 anos. Ela publica sobre famílias com pais idosos. Vários dos comentários de Paula têm a ver com a experiência recente, minha e de meus irmãos, nos últimos anos com nossa mãe, e no que acontece depois.

Esta orfandade não é como a tragédia de alguns personagens de Dickens. Quando não há mais patriarca nem matriarca, quando já não se é o filho de alguém que está vivo, não há mais uma geração se interpondo entre a nossa e a morte. Nós somos a próxima e somos confrontados com a nossa própria finitude. Por isso, a perda do primeiro que se vai é diferente. Ali ainda fica um a ser consolado, cuidado, apoiado.

Durante anos, telefonemas entre irmãos começaram por “está tudo bem”, e só então se entrava no assunto. Agora, as ligações se iniciam por “alô, olá, oi”... O que nos uniu e ocupou nos últimos tempos da mãe, como há 30 anos quando nosso pai adoeceu, deixou de existir. Como iremos nos relacionar daqui em diante? Iremos?

Ter pais vivos até idade avançada é um privilégio. Mas ser o filho de alguém por tantos anos e já não ser causa impacto profundo. Não há alívio pelo fim dos cuidados e preocupações. Há, sim, um vazio imenso.

Se a relação foi boa, a perda faz sentir falta da convivência longa e prazerosa. Quando não era tão boa assim, pode haver a dor adicional do desperdício de ocasiões para resolver conflitos.

Não ter mais a última pessoa que esteve conosco desde que nascemos e podia contar detalhes, que sabia quem era aquela tia numa foto antiga, entendia uma piada só nossa ou lembrava um apelido familiar, são faltas definitivas que passamos a perceber.

Quando a velhice fica crítica, sabemos que o fim e consequente perda se aproximam. Podemos estar preparados, nunca estamos prontos. Na hora, a dor da perda e o luto têm que ser vividos. É o único caminho. Não há atalhos. Saber dos sentimentos de outros nessa fase pode ajudar a nos sentirmos menos sós.

Flavio José Kanter - Médico

Fonte: Zero Hora 08/10/12