quinta-feira, fevereiro 07, 2013

Eles eram Filhos


Desta vez, me pegou. Já vi coisa feia nessa profissão. Já fui repórter de polícia, já fui repórter de todas as editorias, testemunhei acidentes com mutilações graves e tumultos sangrentos, violências e exumações, revolta e dor. Vi a miséria humana. Mas, agora, essa tragédia de Santa Maria me abalou. Não por causa das cenas horrendas dos corpos no chão do ginásio, naquele momento em que caminhei pelas sombras do vale da morte. Não. Isso foi chocante, claro que sim, mas não foi o que me ficou no peito. O que me matou por dentro é que ali todos eram filhos.

Filhos.

Uma pessoa, quando ganha um filho, deixa um pouco de ser, ela mesma, filha. Sua condição muda. Agora ela não é mais apenas receptora, é também doadora de amor.

A realização do ser humano é tornar-se doador de amor, mais do que receptor. Claro, essa realização não se dá apenas com a paternidade e a maternidade. Padrinhos e madrinhas, tios e tias e até amores românticos podem suprir essa necessidade de amar.

Mas o objeto de amor, o filho, enquanto ele vive só na condição de filho, é como se ele estivesse no começo, como se estivesse na fase de estreias da existência. Há muito ainda pela frente e, por ele não saber o que há pela frente, há quem o vele e guarde – são os seus pais.

Um filho que já teve filho lega a seus próprios pais outro ser para guardar e velar: o neto. Quer dizer: o amor que os pais tinham por aquele filho, de certa forma, é um amor já realizado, como o de amantes que se casaram. O amor continua, mas, por ser realizado, é um amor aplacado da gana e da fúria, é um amor sem ansiedade, um amor de primavera, não de verão.

Já um filho que ainda não teve filho é objeto de um amor pulsante, um amor aflito, que acorda de madrugada para contar a ausência do ser amado no relógio.

Os jovens que estavam deitados sem vida no ginásio de Santa Maria encontravam-se nessa condição. Eles eram filhos. Raríssimos deviam ser pais. Talvez nenhum o fosse. Não por acaso, o celular de um deles tocava sem parar, 10, 20, 30 vezes. Os voluntários olhavam para o celular, depositado sobre o peito do jovem morto e liam no painel quem chamava: “Mãe”.

Foi isso que me pegou: pensar nas mães e nos pais daqueles meninos e meninas. Porque todos acham que os filhos são dependentes dos cuidados dos pais, quando é o contrário: os pais é que são dependentes do bem-estar dos filhos. Pois, afinal, o amor que se dá é muito mais valioso do que o amor que se recebe. Pois, afinal, amar acaba sendo mais importante do que ser amado.

David Coimbra- Zero Hora 01/02/2013