quarta-feira, julho 18, 2012

Tirando os olhos do próprio umbigo

Na mesma semana em que fiquei inconsolável por ter perdido (ou terem me roubado) a carteira com todos os documentos dentro, conheci a história de uma moça que já passou por umas chateaçõezinhas também.

Foi criada numa família machista. Apesar de concluir a faculdade de Direito, o pai a proibia de trabalhar. Teve o primeiro relacionamento só aos 25 anos. Casou, porém o parceiro possuía problemas que tornavam a vida comum um inferno. Ela engravidou e deu à luz um filho que, com um ano de idade, foi diagnosticado com uma doença rara que causava retardo motor – talvez nunca viesse a caminhar. Ela largou tudo para cuidar do filho, e tanto pesquisou que conseguiu descobrir um tratamento que reverteu as piores expectativas – hoje seu filho caminha. Em meio a isso tudo, o então ex-marido passou a viver como mendigo, dormia numa obra. Ela não teve dúvida: o resgatou e o encaminhou a um hospital. Foi quando descobriram que ele havia contraído o vírus HIV, e que havia o risco de ela e o filho terem o vírus também. Depois de muitas noites sem dormir, veio o resultado. Não, mãe e filho não haviam sido contaminados. Mas descobriu-se que o menino, agora com cinco anos, tinha um número enorme de pólipos no intestino, o que exigia exames anuais muito desconfortáveis para uma criança. Nisso, o pai do garoto faleceu. Nada fácil dar a notícia.

Trégua: ela conheceu outro homem, finalmente o amor da sua vida, com quem teve alguns anos felizes. Até que ele morreu de uma hora para outra. Dois meses depois, ainda em luto, ela descobriu que tinha um câncer de mama, e não estava em fase inicial: o tumor media 11 centímetros. Debilitada emocionalmente, nem assim entregou os pontos: iniciou quimioterapia, descobriu nódulos no outro seio, perdeu cabelo, cílios e 15 quilos, fez uma mastectomia radical e hoje é uma mulher, segundo palavras dela mesma, que se considera feliz e vitoriosa, pois teve a oportunidade de se tratar com uma equipe excelente e descobriu com a doença o seu potencial para fazer diferença na vida dos outros: atualmente é voluntária do Imama e estuda legislação do Direito Médico. Conclui ela seu depoimento, fazendo graça: “Nada mais me abala, até medo de barata eu perdi”.

Ninguém tem controle sobre o próprio destino, mas podemos nos precaver, nos informar e nos fortalecer. Hoje é o Dia Nacional da Luta contra o Câncer de Mama. Das 8h30min às 18h, no Teatro do Sesc, médicos especialistas em mastologia, oncologia, radioterapia, reconstrução mamária e oncoplastia irão apresentar as últimas novidades no tratamento da doença. É aberto ao público, entrada franca. Ela deverá estar lá.

Perder algumas batalhas é natural. Perder os documentos, banal. Perder o medo diante de graves desafios e seguir lutando pela vida, crucial.
Marta Medeiros
Zero Hora 18/07/12

domingo, julho 15, 2012

De alma escancarada

A construção das relações pessoais é regida por atitudes e comportamentos muito claros e permanentes, e que determinam se os vínculos vão ser solidificados ou implodidos.
Neste sentido, o sofrimento talvez seja o balizador mais competente e inflexível. Isso porque não há exercício de aproximação entre duas pessoas mais eficiente do que a solidariedade no desespero, nem instrumento de aversão mais áspero do que o descompasso afetivo.

Carl Gustav Jung já recomendava: “aprenda todas a teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”, porque é da sintonia afetiva dessa relação que se estabelecerá uma interação emocional para ser lembrada com carinho ou desprezo”.

A maioria das pessoas tem uma vida tão pobre de emoções que uma doença grave, uma passagem pela terapia intensiva ou uma cirurgia de grande porte têm grande chance de serem rememoradas como um marco emocional na vida daquele indivíduo.

Se isso funciona assim, cuidado, meu doutor, ao se aproximar de alguém que sofre, pois você será catalogado no arquivo emocional daquele paciente conforme sua atitude afetiva. E esta classificação não admite revisões.

Quando um médico apressado diz ao paciente no corredor que ele tem um tumor e que depois passará no quarto para conversar sobre o seu caso, esta relação está definitiva e irreparavelmente rota porque foi negada a solenidade proporcional ao momento crítico da vida emocional daquele pobre paciente.

E que ninguém seja ingênuo de supor que esta ruptura possa ser consertada.

Para alguém fragilizado pela doença e terrificado pela fantasia da morte, não há atropelamento afetivo mais doloroso e inesquecível do que a desconsideração.

No extremo oposto, a recepção solidária e carinhosa de dúvidas e medos, angústias e fantasias, tristezas e esperanças, estabelece o vínculo mais sólido e definitivo que se possa imaginar. E todos estes ingredientes estão ali, comprimidos naquele abraço prolongado depois da primeira consulta.

Esta exposição de afeto é que dá ao médico a rara oportunidade, entre todas as profissões, de conhecer verdadeiramente as pessoas em pouco tempo de convívio, visto que premidas pelo sofrimento e pela ameaça da morte, nunca têm animo nem motivação para aparentarem, e desnudas de disfarce, elas simplesmente são.

Esse intercâmbio afetivo intenso, apesar da fugacidade do encontro, enseja a oportunidade – para que aproveitemos ou não – de nos tornarmos especialistas em gente, essa matéria-prima que se renova a cada novo personagem, com sua história pessoal, às vezes caótica, às vezes pungente, mas sempre rica, única e intransferível.

 J. J. CAMARGO
Zero Hora 14/07/12